Por Arman Yeltay, Celso Figueiredo e Geovana Pessoa *
No dia 8 de março de 2018, os Estados Unidos da América (EUA) divulgaram a revisão da sobretaxa estado-unidense sobre importações de aço e alumínio, aplicada no âmbito da Seção 232. O caso tratou de um mecanismo de defesa comercial regulado pelo Trade Expansion Act of 1962, cuja função primária é garantir a “segurança nacional” em face de importações consideradas “prejudiciais”.
De forma detalhada, os EUA aplicaram uma sobretaxa às importações de aço e alumínio de várias origens, dentre elas o Brasil, sob o argumento de que os preços destes produtos no mercado internacional sofrem influências de subsídios acionáveis e outras medidas desleais de comércio e, por conta disso, estariam sendo importados a um preço desleal, cujo principal resultado seria “quebrar” a indústria de base americana que fornece insumos para a fabricação de armas e outros equipamentos militares, influindo, portanto, na segurança nacional americana.
Após a decisão, houve um impacto significativo no comércio dos EUA com os seus principais parceiros. As exportações da China de aço e de alumínio reduziram USD 97 milhões e USD 729 milhões, respectivamente. Igualmente, as exportações dos produtos da Rússia diminuíram em USD 22 milhões e USD 676 milhões.
Por conta disso, houve um frisson geral dos membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), inclusive levando a China, União Europeia, Canadá, México, Noruega, Rússia e Turquia a questionarem a medida americana no Órgão de Solução de Controvérsias, sendo acompanhado pelo Brasil e por diversos outros países que se qualificaram como terceiras partes interessadas (WT/DS 554; 548; 550; 551; 552; 554; e 564).
Para os EUA, tal movimento dos seus pares seria descabida, uma vez que a sua medida estaria amparada pelo Artigo XXI do Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1994 (GATT), que trata de exceções ao GATT, sob justificativa de segurança nacional.
Os Painéis que julgarão o mérito da medida dos EUA foram instalados em 25 de janeiro de 2019, mas nenhuma decisão foi publicada até o momento. O GATT não traz situações específicas em que o Artigo supracitado pode ser empregado. Assim, a interpretação de “interesses essenciais à segurança” varia de acordo com o caso.
Por conta disso, um dos principais pontos de debate, que é saber se o órgão de solução de controvérsias da OMC poderia reavaliar as justificativas utilizadas como preceitos para restrição de importações sob o critério de ameaça à segurança nacional, permanecia em uma zona um tanto quanto cinzenta.
No entanto, tal zona cinzenta ficou um pouco mais nítida a partir do início de abril, quando a OMC circulou decisão sobre o contencioso entre a Rússia e a Ucrânia relativa ao mesmo Artigo XXI GATT/1994 (WT/DS 512). Essa foi a primeira vez que a OMC se posicionou quanto à legalidade da utilização dessa justificativa pelos Membros da Organização, criando jurisprudência aplicável à própria disputa envolvendo os EUA e o seu Section 232.
No caso da WT/DS 512, a Rússia proibiu a circulação de mercadorias originárias da Ucrânia em rodovias e ferrovias russas, em razão do conflito de anexação da Crimeia, sob a alegação de proteção aos “interesses essenciais à segurança”, com base no art. XXI(b)(iii) do GATT[1]. Em linhas gerais, esses interesses podem ser entendidos como aqueles relacionados à defesa de sua população e de seu território contra ameaças externas.
Devido a esse conflito, a Ucrânia reclamou na OMC sobre uma grande redução de seu comércio com a Ásia Central e o Cáucaso.
No decorrer do caso na OMC, Moscou argumentou que a medida era necessária para garantir a segurança nacional, alegando que a tensão com a Ucrânia estava em estado crescente após o início de embates em 2014. O país afirmou, inclusive, que a dissidência com a Ucrânia estava próxima de alcançar o pico de um conflito armado.
Ademais, a Rússia argumentou que a aplicação do Artigo XXI(b)(iii) extrapolava o escopo de relações comerciais e econômicas entre os Membros da OMC e, por isso, estaria fora da jurisdição da Organização. Segundo Moscou, o direito de responder à guerra ou a outras situações emergenciais não pode ser “reavaliada por outras partes”.
A Ucrânia, por outro lado, argumentou que os Membros não possuem “liberdade total” em interpretar e aplicar as medidas tomadas no âmbito do Artigo XXI(b)(iii). Assim, uma possível determinação unilateral estaria em desconformidade com a jurisprudência do Órgão de Solução de Controvérsias (DSB), pois caberia ao Painel da OMC julgar a utilização de exceções de segurança previstas no GATT.
Em sua decisão, o Painel da OMC entendeu que as condições para invocar o Artigo XXI(b), sobre exceções à segurança nacional, foram atendidas por Moscou.
Porém, o Painel também julgou que a interpretação do Artigo não é totalmente discricionária, como havia argumentado a Rússia. Assim, a OMC afirmou que a Organização se reserva o poder de reavaliar as condições necessárias para a utilização da cláusula em questão.
Em outras palavras, a OMC se reserva no direito de revisar as medidas impostas por seus Membros de restrição ao comércio aplicadas sob a justificativa de proteção à segurança nacional.
Na prática e, já fazendo uma correlação com a Section 232 que está em discussão na OMC, os EUA não estão proibidos de impor uma tarifa adicional sobre importações do aço e do alumínio. No entanto, a justificativa que embasar estas medidas excepcionais poderão ser consideradas descabidas de acordo com as regras da OMC e poderão ensejar retaliações cruzadas permitidas pela referida organização, tal como disposto nos art. 8 Do Acordo sobre Salvaguardas.
Por fim, percebe-se que uma decisão do WT/DS sobre o caso dos EUA nos moldes da que foi tomada pela WT/DS 512 (Rússia) certamente afetará outras medidas sob a Section 232 dos EUA. Neste caso, resta destacar que, recentemente, a Representação Comercial dos Estados Unidos (USTR) concluiu uma nova investigação no âmbito da Seção 232 sobre importações de automóveis e autopeças. O relatório do USTR, cujo conteúdo ainda não foi divulgado, já se encontra em avaliação pela Casa Branca. Pressupõe-se que os EUA adotarão a mesma justificativa utilizada no caso de alumínio e aço para restringir importações e, sendo assim, poderá também estar passível de revisão perante a OMC.
*Arman Yeltay é analista de Relações Internacionais. Graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e Mestrando em Política Internacional e Comparada pela mesma instituição. Consultor em Comércio Internacional pela BMJ Consultores Associados.
Celso Figueiredo é Advogado e Internacionalista. Doutorando em Direito Internacional pela USP e Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Consultor em Comércio Internacional pela BMJ Consultores Associados.
Geovana Pessoa é Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e estagiária na área de Comércio Internacional da BMJ Consultores Associados.
[1] ARTIGO XXI
EXCEÇÕES RELATIVAS À SEGURANÇA
Nenhuma disposição do presente Acordo será interpretada:
(b) ou como impedindo uma Parte Contratante de tomar todas as medidas que achar necessárias à proteção dos interesses essenciais de sua segurança:
(i) relacionando-se às matérias desintegráveis ou às matérias primas que servem à sua fabricação;
(ii) relacionando-se ao tráfico de armas, munições e material de guerra e a todo o comércio de outros artigos e materiais destinados direta ou indiretamente a assegurar o aprovisionamento das forças armadas;
(iii) aplicadas em tempo de guerra ou em caso de grave tensão internacional;