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Debate Regulatório: A inteligência artificial e os modelos possíveis

14/08/2022 08:00:00 / por BMJ Consultores

Por Isabela de Castro, João Eudes e José Henrique Amorim*

O tabuleiro internacional está repleto de países que adotam soluções distintas para solucionar os mesmos problemas regulatórios. Atualmente, no Brasil, discute-se a regulamentação da Inteligência Artificial (IA). O debate, no entanto, apresenta diversos desafios, afinal qual seria a maneira mais apropriada para fazer isso tendo como objeto uma aplicação tecnológica ainda em desenvolvimento? Mesmo em setores já bem estabelecidos na economia, as divergências a respeito de uma regulamentação ideal estão sempre presentes. No caso da Inteligência Artificial, o debate vai além da escolha política de qual seria o melhor modelo regulatório, e atravessa o conflito intrínseco entre a natureza da inovação e a necessidade de se estabelecer controle de uma tecnologia em ascensão.

Partindo disso, o presente artigo discorre sobre os principais casos internacionais quando se trata de regulação, abordando os modelos possíveis que podem influenciar o debate nacional. Ainda neste sentido, são abordados casos práticos implementados no Brasil por outros setores e que refletem um pouco da realidade regulatória de setores dinâmicos e inovadores. Como fruto de uma análise, apresentamos os caminhos para a regulamentação da Inteligência Artificial no Brasil, com base nas principais discussões a respeito do tema e dos principais projetos no cenário político.

 

Modelos de Regulação

Quando se estabelece um modelo de regulação, é inevitável que países em desenvolvimento, como o Brasil, se baseiem em exemplos já consolidados no cenário internacional. Por exemplo, em países com maior liberdade na economia, como os Estados Unidos (EUA), identifica-se a “autorregulação” como o principal modelo adotado. A privacidade de dados é um bom exemplo. A Federal Trade Commission (FTC), entidade responsável por supervisionar o comércio e serviços na ótica de proteção ao consumidor, incentivou a autorregulação e o uso de tecnologias para a promoção da proteção de dados. Logo, de modo geral, a estrutura autorregulatória nos Estados Unidos é segmentada por setores, tipos de dados e é diversificada, a depender de cada estado.

Representando um modelo regulatório tradicional e restritivo está a União Europeia. O Bloco estabeleceu um regramento para tecnologia e inovação mais robusto: a Regulação Geral de Proteção de Dados da Comunidade Europeia. A Regulação, formada por uma Lei Geral e por regras focadas em setores específicos como o bancário ou de plataformas digitais, também conta com classificações e níveis de risco para a sociedade a depender da tecnologia aplicada. Este é um exemplo de regulação balizada pelo Estado.

Enquanto EUA e UE ilustram experiências em sentidos opostos, a China criou o Plano Made in China 2025 (MIC), que tem como principal objetivo o ganho de competitividade no mercado internacional. O Conselho de Estado, estabelecido pelo Plano, tem como objetivo a promoção de uma reforma institucional sistêmica, perpassando por temas de gestão governamental e autorregulação da indústria. Na contramão do MIC, em 2021, entrou em vigor a Lei sobre Segurança de Dados chinesa. A Lei impõe medidas rigorosas sobre o armazenamento e fluxo de dados gerados na China, dando indícios de que o governo chinês pretende regular as big techs. Isso influenciaria principalmente as empresas estrangeiras que geram fluxo de dados no país. Conclui-se, portanto, que a China está no pêndulo entre o modelo europeu e o modelo americano.

Entre todas as peças dispostas neste cenário, o Brasil tem se movimentado em direções múltiplas ao longo dos anos. É verdade que, tradicionalmente, o modelo europeu seja adotado com mais frequência por aqui, mas existem experiências que indicam uma possível quebra de paradigmas, como as experiências do setor financeiro e, mais recentemente, uma iniciativa no setor de telecomunicações.

 

Exemplos de Autorregulação no Brasil

No setor financeiro, vale destaque à atuação da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), que promove a autorregulação dos agentes de investimento de acordo com o código de conduta elaborado pelas próprias associadas. A atividade de autorregulação da ANBIMA consiste em: I) Elaboração de regras; II) Supervisão; e III) Enforcement¹. Para tal, a associação cria um modelo de autorregulação privada e voluntária, onde as regras criadas são convencionadas e aprovadas entre os representantes das entidades associadas. Essas regras formulam um código de conduta e boas práticas para 12 atividades do setor regulado, e são obrigatórias para todos os membros da entidade. Após elaborado o código de conduta, a ANBIMA também coordena a supervisão de mercado para verificar o cumprimento das normativas. Por fim, o enforcement realizado pela associação consiste na instauração e julgamento de processos administrativos, podendo resultar em multas e outras sanções.

Tais mecanismos fazem com que o setor regulado pela ANBIMA funcione em uma dinâmica de mercado que garanta a competitividade, boas práticas e acima de tudo, eficiência regulatória. Entretanto, as normas estabelecidas em conjunto pelas empresas representadas na ANBIMA não se sobrepõem aos atos do setor editados pelas autoridades públicas competentes, especialmente pelo Banco Central do Brasil (BCB). Em linhas gerais, os códigos da ANBIMA são mais restritos do que a regulação vigente. Contudo, é uma iniciativa propositiva e voluntária do setor regulado, que atua de modo acessório para melhoria das práticas de mercado. A iniciativa tem inspirado outros setores, como o de telecomunicações, a darem passos rumo a alternativas que se aproximem da autorregulação.

Em 2021, as principais empresas do setor lançaram um canal para os consumidores que não tinham interesse em receber ofertas de produtos e serviços, o “Não me Perturbe”. Com o sucesso da experiência, as empresas esperam dar um novo passo rumo à regulação do próprio mercado, criando o Sistema de Autorregulação das Telecomunicações (SART). O Sistema é conduzido pelo Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia Móvel e Pessoal (Conexis), e se estabelece como um conjunto de princípios, regras e procedimentos de autodisciplina que visam permitir uma regulação efetiva e eficiente do setor de telecomunicações para as empresas associadas².

Assim como no caso da ANBIMA, o SART não conflita com o regramento vigente, de modo que legislações, normas editadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e decisões judiciais continuam sendo cumpridas. O benefício prometido para as empresas que se submetem ao sistema é uma espécie de selo de qualidade, que comprova o alinhamento às normas de autorregulação. Na estrutura do SART, existe um Conselho de Signatários, que é responsável por deliberar a entrada de novos membros e definir a agenda normativa, e um Conselho de Autorregulação, que aprova as normativas e trata dos processos disciplinares.

 

Regulação e a Inteligência Artificial

Os casos acima ilustram algumas ocasiões em que os setores regulados no Brasil buscam promover a autorregulação de seus agentes associados. Essas iniciativas colaboram com uma reflexão a respeito das possibilidades de regulamentação de novas tecnologias, como a Inteligência Artificial, que cada vez mais direciona seus debates em direção à autorregulamentação.

No âmbito da Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre inteligência artificial no Brasil (CJSUBIA), que é a atual instância de tramitação do Marco Regulatório da Inteligência Artificial no Legislativo, muito se discute sobre um modelo de autorregulação. Este debate, porém, está ligeiramente relacionado com as discussões que fundamentaram a Proteção de Dados Pessoais no Brasil. Contudo, apesar de existir um campo de contato quando se trata de regulamentar IA e Proteção de Dados Pessoais, o caminho escolhido pelo legislador no caso dos Dados Pessoais foi diferente.

É previsto na redação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no Art. 55, que a natureza jurídica da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) seria transitória. Inicialmente a ANPD instalou-se como órgão da Presidência da República, e, no mesmo artigo desta disposição, foi previsto que passados dois anos de sua instalação, seria avaliada a transformação da Autoridade em autarquia de natureza especial, correspondendo a um modelo regulatório tradicional. Deste modo, em meados de junho o governo federal publicou a Medida Provisória 1124/2022, que transforma a ANPD em autarquia de natureza especial.

Observada a tradição regulatória conduzida no Brasil, é comum que a obsolescência jurídica seja percebida de forma mais rápida quando a legislação se propõe a regulamentar a inovação e tecnologia. Durante os debates realizados pela CJSUBIA, diversos palestrantes enumeraram formas de lidar com os riscos inerentes ao desenvolvimento tecnológico e, principalmente, apontaram os diversos modelos regulatórios existentes como possíveis alternativas para o Marco Regulatório da IA.

Percebe-se que setores que estão em constante evolução e que investem largamente em inovações, como o financeiro e o de telecomunicações, têm adotado iniciativas voltadas para um modelo autorregulatório, mesmo com supervisão estatal. Deste modo, se setores com uma ligação intrínseca à tecnologia estão caminhando para uma autorregulação com supervisão estatal, é de se esperar que o mesmo aconteça com a IA. Parece ser o caminho mais seguro para não inibir a inovação. Essa intersecção indica uma tendência na aplicação de modelos de autorregulação regulada, ou seja, uma regulação com normas elaboradas pelo mercado, em conjunto com os órgãos reguladores, onde o governo fornece apoio para permitir que as disposições sejam aplicadas e fiscalizadas.

No âmbito da Comissão de Juristas para a inteligência artificial, representantes do mercado já manifestaram uma clara preferência por modelos de autorregulação ou corregulação. Até o momento, a CJSUBIA ainda não debateu as contribuições dos especialistas convidados para as Audiência Públicas realizadas. Porém, considerando o texto aprovado na Câmara dos Deputados do   – projeto principal do Marco Regulatório da Inteligência Artificial – e grande parte das contribuições feitas pelos convidados da CJSUBIA, é possível considerar a hipótese de que seja adotado o modelo de autorregulação no mercado tecnológico nacional. Mesmo assim, ainda é importante destacar que o posicionamento em defesa de uma regulamentação mais branda não é unânime entre os diversos contribuintes das Audiências Públicas.

Como apontado, as discussões sobre inteligência artificial no Senado Federal tem recorrentemente caído sobre a não-regulamentação (autorregulação pura) ou um sandbox regulatório, justamente pelo caráter dinâmico e constante evolução de novas tecnologias. Fato é que o cerne do debate ainda está entre restrições e liberdade de mercado. Neste sentido, o sandbox tem figurado como uma das modalidades para se desenvolver um modelo mais livre de regulação. Desta forma, é possível que o caminho da autorregulação regulada seja percebido como uma tendência para os órgãos reguladores. No entanto, ainda não é certo se o modelo contribuirá para o florescimento de novas tecnologias ou se colocará em xeque o desenvolvimento destas.

 

 

REFERÊNCIAS

  1. https://www.anbima.com.br/data/files/24/91/D5/DA/15C416102956441699A80AC2/Modelo%20de%20autorregula__o%20supervis_o%20e%20enforcement.pdf
  2. https://conexis.org.br/autorregulacao/sart/institucional/sobre-o-sart/
  3. https://www.fca.org.uk/publications/research/regulatory-sandbox-lessons-learned-report

 

*João Eudes é Consultor de Financeiro e Tecnologia da BMJ Consultores Associados.

*José Henrique Amorim é Consultor de Financeiro e Tecnologia da BMJ Consultores Associados.

*Isabela de Castro é estagiária de Financeiro e Tecnologia da BMJ Consultores Associados.

 

Tópicos: Estados Unidos, 5g, Brasil, Tecnologia, Inteligência Artificial, Regulamentação, Europa, Segurança virtual, Ciência de Dados, IA, autorregulação

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