Por Jales Caur*
A discussão da pauta identitária na sociedade tem seus reflexos diretamente no caráter representativo da esfera legislativa federal. Este artigo analisa qualitativamente todo o conteúdo de temáticas LGBTQIA+ publicado nas redes sociais dos parlamentares durante 2023. A extração foi feita com base em palavras-chave e considerou o período de 1º de janeiro a 31 de dezembro.
O objetivo é identificar os principais parlamentares engajadores da pauta nas redes sociais — entendidas aqui como o principal mecanismo de comunicação para as massas desde as duas últimas eleições — e, a partir da associação com o contexto fora das redes, identificar o impacto que os parlamentares tiveram frente à pauta LGBTQIA+. Para tal, o artigo entende engajamento como soma de todas as interações feitas em uma publicação — comentário, curtida e compartilhamento.
Foram contabilizadas cerca de 2.943 publicações, criando uma amostragem de 95% de confiabilidade e margem de erro de 0,2%, em relação ao universo total de publicações realizadas pelos parlamentares em 2023. Somadas, essa amostra angariou 7.1 milhões de interações. Os meses de maio e junho possuíram o maior volume de publicações em decorrência de datas internacionalmente importantes para o grupo. São elas: o dia 17 de maio, Dia Internacional de Combate à Homofobia; e todo o mês de junho, em especial o dia 28, dedicado ao Orgulho LGBTQIA+. No entanto, conforme observado, o engajamento não acompanhou o fluxo de publicações — foram, em suma maioria, postagens feitas por parlamentares apoiadores da causa. É identificado, também, que há chances de maior engajamento de publicações sobre o tema nos meses sem datas comemorativas voltadas para a população LGBTQIA+, já que há maior probabilidade para pautas mais polêmicas e com discursos menos polidos ganharem atenção nas redes sociais.
Analisado isso, o mês com mais interações foi julho, com destaque das publicações da deputada Erika Hilton (PSOL/SP) sobre investigações da denúncia de suposto crime de pastor evangélico após discurso de ódio à comunidade. O senador Fabiano Contarato (PT/ES) foi o responsável pela representação criminal juntamente ao Ministério Público Federal (MPF). Hilton também aciona o Ministério Público de Minas Gerais pela segunda vez, já que havia entrado com uma ação contra a mesma pessoa no mês de junho. A esse volume de engajamento, somam-se as publicações do encerramento do primeiro semestre de 2023, registrando o maior pico do ano antecedendo o “recesso branco”[1] do Poder Legislativo — mesmo com redução de 47,6% nas publicações entre junho e julho.
Em setembro, houve bastante engajamento positivo para a causa em defesa dos direitos já adquiridos pela população. No mês, foi aprovado na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 580/2007, que proíbe a união estável entre pessoas do mesmo sexo — o “contrato civil de união homoafetiva”, conforme ementa do projeto de lei (Brasil, 2007). A união estável é reconhecida pelo Superior Tribunal Federal (STF) desde 2011 (Brasil, 2011). A discussão no legislativo surgiu após questionamento de que tal prática feriria o papel deliberativo da casa. Os debates em torno dessa questão se prolongaram até outubro, quando o engajamento da oposição subiu consideravelmente devido ao foco estar direcionado aos conflitos na Faixa de Gaza e à intensificação dos debates em torno da Reforma Tributária.
Da somatória total de engajamento, 69,6% de publicações foram feitas por parlamentares que costumam se posicionar favoráveis à causa LGBTQIA+. Essa porcentagem, no entanto, deve considerar que nem todo o engajamento é positivo, logo, proibindo uma inferência direta de que esse valor seja de pessoas a favor da pauta e defendam a discussão de direitos pelo Poder Legislativo. Essa perspectiva pode ser mais bem entendida quando se observado os dez principais parlamentares que mais engajaram na pauta em 2023.
Dos dez nomes, seis são filiados ao Partido Liberal (PL) e apresentam discursos classificados como contrários à pauta LGBTQIA+ no âmbito do Congresso Nacional. O PL já apresenta uma base consolidada de engajamento nas redes sociais, facilitando a ampliação do discurso nas redes. Essa amplitude, aliada ao discurso indireto disfarçado por códigos como “defesa dos valores”, “defesa da família tradicional” e outros vocabulários de cunho religioso; contribuem para a amplitude de alcance desses parlamentares.
Entre os perfis promotores, somente a deputada Erika Hilton se destaca, com engajamento de mais de 3.2 milhões de interações e com cerca de 331 publicações durante o ano. Hilton, primeira mulher transsexual eleita deputada federal pelo estado, possui ampla base de engajamento por dialogar com diferentes nichos nas redes sociais — dentre eles, destaca-se a juventude e a população LGBTQIA+. Dessa forma, sua persona se torna promotora, mas não forte o suficiente para alcançar demais nichos das redes sociais.
É importante frisar, também, que o engajamento nas redes sociais não traduz políticas públicas a curto ou médio prazo. Classificada como low politics[2], pautas identitárias são de difícil materialização somente pelo engajamento social — ainda mais apenas pelas redes sociais. Essas ações são mais expressivas quando materializadas em grupos de autoridades públicas e/ou stakeholders unidos para o advocacy da causa nas redes sociais. Uma alternativa que se mostra viável de se materializar tais transformações com auxílio do engajamento das redes sociais e da internet de maneira mais rápida e menos onerosa, como se tem visto em casos práticos em países na Europa e nas Américas, até mesmo no Brasil; seria por meio das eleições diretas.
A partir do argumento de dificuldade de concretização da pauta identitária expressada nas redes sociais em política pública específica para determinada população — neste caso, a LGBTQIA+ —, justifica-se o baixo engajamento da casa legisladora em projetos de leis voltados para a população LGBTQIA+. Desde o início da 57ª legislatura, a Câmara dos Deputados apresentou somente 26 PLs com alguma palavra-chave voltada à temática na ementa. Quanto à continuidade desses e dos que já tramitavam, para além da tentativa de dar celeridade ao projeto de lei que proibiria união civil entre pessoas do mesmo gênero; não houve movimentações relevantes ou ganho de direitos reais.
Desses projetos, as deputadas Erika Hilton (PSOL/SP) e Duda Salabert (PDT/MG) encabeçam a lista de autoras. Na casa, somente quatro parlamentares são abertamente LGBTQIA+. Embora se tenha formado pela primeira vez uma bancada, ainda há um longo caminho para que a pauta saia do campo ideacional e ganhe concretude em forma de projetos de leis. Atualmente, o Poder Executivo é mais disposto a retomar e promover políticas de teor mais progressista para minorias políticas (Mantovani et al., 2023, p. 15). No entanto, conforme apresentado, a casa legislativa precisaria estar a par para que as leis correspondessem às políticas e vontades da atual gestão.
No âmbito das redes sociais, passado o primeiro ano no qual a pauta identitária e ideológica da oposição na atual gestão demonstrou um caráter mais forte, as publicações devem perder força no volume. Conforme apresentada a classificação no âmbito das low politics, frente a emergências como a atual crise do Rio Grande do Sul, os debates em torno da Reforma Tributária e demais negociações em torno do orçamento da União — temas considerados pertencentes às high politics —; a temática deverá assumir planos secundários nas narrativas das redes sociais. Nomes como o de Erika Hilton devem ainda serem pontos-focais importantes, mas sem capacidade de manter as discussões sozinhas a âmbito de figura parlamentar. Episódios polêmicos e datas dedicadas à comunidade devem provocar picos, no entanto, ainda sem protagonismo.
A partir da análise do conteúdo das principais autoridades promotoras das pautas LGBTQIA+, visto o Dia Internacional de Combate a Homofobia, as redes sociais deverão ser grandes aliadas na transformação de percepção da pauta LGBTQIA+. Embora algumas questões exijam o deslocamento célere das instituições do Estado, a abordagem de um problema não significa ignorar outro. As instituições e a sociedade brasileira tradicionalmente definem prioridades aos problemas e os resolvem — lidando com o final dessa lista somente quando os mais importantes estejam menos latentes.
Isso provoca a marginalização de determinadas políticas públicas e a má-interpretação delas como de partidos específicos que visam privilegiar determinados grupos — discurso que ganhou força nos últimos anos por meio das redes sociais. Dessa forma, autoridades que se baseiam da voz LGBTQIA+ para fazer política, possuem da mesma ferramenta de comunicação em massa para contrapor esse discurso já difuso entre as diferentes camadas da sociedade brasileira — o que exigirá, também, maior adaptabilidade à diversidade que o Brasil possui enquanto terra e enquanto povo.
[1] Prática realizada para permitir o recesso de meio de ano quando não foi realizada a votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do ano seguinte até o final do primeiro semestre do ano legislativo vigente.
[2] Amplamente utilizada em estudos estadocentricos, como no campo de estudo das Relações Internacionais, high and low politics (alto e baixo nível político, tradução nossa) se trata de políticas essenciais e não essenciais para a sobrevivência do Estado (Brown; MacLean; McMillan, 2018). Atualmente, a leitura que se tem de políticas voltadas para a sobrevivência do Estado inclui a sua soberania, seu poderio bélico, a sua plenitude econômica e o bom funcionamento de suas instituições — levando outras pautas, principalmente sociais, para a esfera de baixo nível de relevância.
Referências
BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.277/DF – Distrito Federal. Relator(a): Min. AYRES BRITTO. Brasil: Pesquisa de Jurisprudência, 14 out. 2011. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur200017/false. Acesso em: 14 maio 2024.
BRASIL. Projeto de Lei no 580, de 27 e março de 2007. Altera a Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — Código Civil, para dispor sobre o contrato civil de união homoafetiva. Brasília, 27 mar. 2007. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=346155. Acesso em: 14 maio 2024.
BROWN, G. W.; MACLEAN, I.; MCMILLAN, A. High and low politics. In: A Concise Oxford Dictionary of Politics and International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2018.
MANTOVANI, D. et al. Perfil Parlamentar (2023-2026) Sob a Ótica da Agenda Feminista – 2023. Centro Feminista e Estudos e Assessoria. Brasília: Cfemea, 2023. Disponível em: https://www.cfemea.org.br/index.php/pt/component/edocman/publicacoes-do-cfemea/perfil-parlamentar-2023-2026-sob-a-otica-da-agenda-feminista-2023. Acesso em: 14 maio 2024.
*Jales Caur é consultor de BMJ Digital e membro do Grupo de Trabalho Externo do BMJ+.