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Consciência e Representatividade: Por que isso importa?

29/11/2020 09:00:00 / por BMJ Consultores

Por Débora Silva e Nicholas Borges

Quando as manifestações antirracistas e contra a violência policial emergiram nos Estados Unidos em junho deste ano,  o debate racial ocupou boa parte das rodas de conversas aqui no Brasil. Vimos, observamos e tivemos que responder diversas pesquisas, dentre elas, o por quê que o movimento negro brasileiro não era tão “organizado” como o movimento nos Estados Unidos.

A sociedade tomou o discurso de ser antirracista, mas de uma forma teórica, imagética e nem um pouco prática. O que mais foi levantado por ativistas negros, após tais manifestações, foi porque a dor do outro nos afeta muito mais que a nossa própria dor? No Brasil, um homem jovem negro morre a cada 23 minutos, e segundo o Atlas da Violência 2020, os casos de homicídio de pessoas negras (pretas e pardas) aumentou 11,5% em uma década. Ou seja, todos os dias pessoas negras são alvo da violência e da marginalização e os posts sobre #BlackLivesMatter não são uma febre nacional.

O movimento negro no Brasil tem um histórico emblemático, mas foi dissipado por diversas questões. Em 1978 surgiu o Movimento Negro Unificado (MNU), a entidade mais próxima já existente no Brasil que personificou o ideal de militância antirracista norte-americano tão admirado por todos. Neste cenário, surgiram grandes nomes, como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Hamilton Cardoso.

Muitos questionam o porquê de o MNU ter sido esquecido e não mencionado, quando falamos de uma movimentação social contra o racismo no Brasil. A resposta que nos vem à mente é que talvez esses questionamentos sejam resultado de como a sociedade brasileira retém as informações que acreditam ser verdadeiras. 

O movimento negro brasileiro é tão atuante quanto o movimento norte-americano, basta você refletir sobre qual tipo de informação você prefere coletar. Suas referências políticas, musicais, do teatro são pessoas negras? Porque temos convicção de que a pauta da resistência está presente de forma quase integral em todos esses sentidos, mas você não os consome. Mas o buraco é bem mais fundo, e não há como culpar diretamente as pessoas.

Quando falamos de racismo no Brasil, falamos de estrutura, falamos de governo, falamos de entidades públicas e privadas imersas em uma falácia que ocupa grande parte do nosso cognitivo, o mito da igualdade racial. Para se entender como funcionou o processo de eugenia no brasileiro, precisamos entender que a ideia de branqueamento da população era prevista e sustentada por lei, na constituição anterior à vigente, e a eugenia era vista como um passo para a modernidade. (Leia "O Genocídio do Negro Brasileiro" de Abdias Nascimento para saber mais)

Viemos de uma realidade que naturalizou a invisibilidade e esquecimento da população negra, por isso toda estrutura (principalmente o poder midiático) e fatos que nos rodeiam são sequer questionados. Muitos de nós crescemos sob a óptica da pedagogia, porque isso nos foi ensinado, de que vivemos em uma democracia racial. Absorvemos esse mito e o naturalizamos em todas as nossas relações e percepções sociais e políticas.  

Cantada nas vozes de grandes nomes da Música Popular Brasileira e retratada em poemas, a igualdade racial, o mito de que todos são iguais, sorridentes e felizes, sustentou durante muitos anos uma utopia longe da realidade. E diziam que nessa democracia típica do Brasil, pessoas brancas e negras conviveram de maneira pacífica e tiveram as mesmas oportunidades e essa era a grande vantagem do Brasil. De fato, sempre convivemos, isso não podemos negar, mas quase 400 anos de escravidão não vão ser solucionados varrendo a sujeira para debaixo do tapete.

O grande impulsor desse pensamento foi Gilberto Freire, que insistiu, incansavelmente, que “a gente goza de uma extraordinária paz e harmonia racial (...) que o Brasil faz contraste com aquelas partes do mundo – aqui ele se referia à Estados Unidos e África do Sul – em que os ódios raciais existem sob formas, por vezes, as mais violentas, as mais cruas.” Para pensadores como Freire, vivíamos no paraíso pois o verdadeiro ódio racial existiria nos Estados Unidos e na África do Sul, pois ali sim o ele era manifesto por meio da violência e da esfera jurídica (leis de segregação racial). No entanto, esse é o verdadeiro perigo do Brasil.

Ainda é difícil discutir a desigualdade racial justamente por causa desse sentimento. Por isso, quando falamos de racismo no Brasil precisamos nos embasar em números para justificar o que é visivelmente real. Basta olhar com mais atenção.

Além dos números de mortes, mencionados no início deste artigo, vale trazer também alguns dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios  (PNAD), que aponta que negros ganham menos que brancos, a taxa de desemprego ainda é maior entre os negros, a taxa de analfabetismo entre negros e pardos é o dobro da entre brancos e negros adultos com até 25 anos têm menos da metade de chances de ter um diploma de ensino superior, comparado com brancos. 

E aqui fazemos um adendo, mesmo com as políticas afirmativas e de inclusão adotadas pelo Governo e pelo Ministério da Educação, e apesar da divulgação de um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontando que negros são mais de 50% nas universidades; isso não significa que proporcionalmente o número de profissionais formados e empregados, é alto para negros, considerando que são maioria na composição étnica do país. 

Ainda, de acordo com a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais, do próprio IBGE, pretos e pardos são maioria em setores com remuneração mais baixa, como agropecuária (60,8%), construção civil (63 %) e serviços domésticos (65,9%). Na outra ponta, falando de violência e de marginalização, temos a constatação de que dois em cada três presos, são negros, ou seja, mais de 60% da população carcerária é negra.

A discriminação racial não se manifesta apenas na violência, mas também na moral, no silêncio institucional sobre como o racismo afeta a todas e todos brasileiros. Não é tão explícito porque o racismo é estrutural da nossa sociedade. Tão estrutural, que sequer questionamos a arquitetura de nosso país, onde são criadas portas da frente e portas de trás, elevadores comuns e sociais, para que os diferentes corpos não se cruzem. 

Mas que corpos são esses e por que não podem se cruzar? Esse é um dos grandes perigos do racismo. A sua audácia em se manifestar na surdina, em coisas do cotidiano, coisas que parecem inquestionáveis. No Brasil, os corpos negros sofrem uma dupla morte. A morte física, pois são as maiores vítimas dos homicídios no país. Mas também uma morte social. Somos a maioria da população, mas ainda não somos a maioria nos espaços de representação social e econômica. Se é através da política, da institucionalidade que podemos mudar o mundo, como vamos mudar o mundo se ainda não ocupamos o poder? Por que não ocupamos o poder? É possível mudar o mundo sem ocupar o poder? 

Nossa visão institucionalista talvez seja uma resposta óbvia. É preciso ocupar os espaços para transformar. No entanto, os corpos negros são vítimas cotidianas dessa violência social de não-representação. Até o ano de 2019 – consideramos essa lógica temporal já que o Congresso sofreu algumas mudanças devido as eleições municipais, apenas 106 parlamentares, dos 594, eram pessoas negras. Esse número representa apenas 17,8% das cadeiras no Congresso Nacional. Essa simples conta matemática revela que estamos muito distantes de representar a realidade da sociedade brasileira. Isso porque estamos fazendo apenas o corte de raça. 

O cenário poderia ser muito mais preocupante se optamos por uma análise interseccional – analisando raça, gênero e classe. A não-presença de pessoas negras nos espaços de poder é uma referência a esse racismo estrutural, que busca reforçar que existem determinados espaços para determinadas pessoas. É uma fórmula mágica. Quando fazemos o “teste do pescocinho”, nos damos conta que existem poucos negros na tribuna, mas quando olhamos para o outro lado, enxergamos pessoas negras em espaços pré-determinados pela estrutura racista da nossa sociedade. Eles são os seguranças, os operadores de serviços gerais, copeiras e afins. Existem linhas que nos separam nos mesmos espaços.  

No entanto, apesar da desesperança que tem sido o ano de 2020, algumas notícias parecem trazer fôlego. Em meados desse ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que a distribuição dos fundos eleitorais dos partidos deveria ser feita de forma proporcional para os candidatos negros. Entretanto, a regra entraria em vigor somente em 2022. O Superior Tribunal Federal (STF) interveio e votou para que a medida já vigorasse nessas Eleições Municipais. Assim aconteceu, mas precisamos pontuar algumas coisas.

Um levantamento realizado pela DeltaFolha, com base na prestação de contas parcial dos candidatos entregue à Justiça Eleitoral, mostrou que apesar de os partidos receberem muitas candidaturas negras (50%), os fundos não foram repassados. Ainda, as mulheres (33,5) ficaram esquecidas comparadas aos candidatos homens. E como esses partidos vão ser punidos? De nenhuma forma, pois a regra da proporcionalidade ainda não está prevista em lei. 

Quando olhamos para nossas últimas eleições, tivemos o aumento de mais de 6% de vereadores negros eleitos. Entretanto, quando comparamos com brancos, o número chega a mais de 53%. Ou seja, mesmo com toda uma mobilização nas redes sociais, pessoas se dizendo antirracista e um aumento da abordagem sobre essa temática, mais da metade dos candidatos eleitos são brancos.

Então deixamos aqui um questionamento: seu voto é antirracista? 

Para que nossa sociedade consiga superar e transformar velhas culturas, precisamos além de discutir, pesquisar e entender nosso papel nessa luta. A transformação acontece através do que já havia proposto a pensadora negra, Lélia Gonzáles, é preciso torna-se negro. Em uma escala além do cognitivo. É preciso reconhecer, ter consciência, sobre as estruturas de poder que estamos inseridos para enegrecer a política e torná-la, por fim, representativa. Você também é responsável por essa transformação.

 

Tópicos: Negros, Consciência Negra, Representatividade, Congresso Nacional, Eleições 2020

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