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A antipolítica, dois anos depois

10/11/2020 17:12:32 / por Mauro Cazzaniga

Desde 2015, o descrédito na capacidade das democracias liberais de atenderem às necessidades de seus cidadãos – dito de outra forma, a “desconfiança com a política tradicional” – promoveu a ascensão dos chamados governos populistas. No entanto, para além do populismo, podemos definir os movimentos como antipolíticos.

A primeira parte da descrição – o populismo – capitaliza na insatisfação com os políticos tradicionais tomando para si a prerrogativa de representar o verdadeiro interesse do povo contra o da elite política. O elemento antipolítico segue como um complemento: para representar o povo contra “tudo isso que está aí”, o líder precisa ser um outsider em relação à política tradicional.

Alguns exemplos próximos encarnaram a figura do “gestor” ou empresário da iniciativa privada contra o político. Foi o caso de Mauricio Macri, eleito presidente da Argentina em 2015, conhecido por ser o presidente do clube Boca Juniors. Em São Paulo, João Doria se elegeu para prefeito no primeiro turno em 2016. O empresário Donald Trump – cuja entrada na política norte-americana sempre foi tratada em tom jocoso – se tornou presidente dos Estados Unidos. Na Itália, o Movimento 5 Estrelas, fundado pelo comediante Beppe Grillo, chegou ao poder e indicou Giuseppe Conte, professor universitário sem experiência política prévia, para primeiro-ministro.

O sentimento antipolítico, que no Brasil costuma se manifestar por meio da alta rejeição ao Congresso Nacional, também teve papel significativo nas eleições presidenciais de 2018. No entanto, ao contrário dos outsiders citados acima, Jair Bolsonaro ocupava a posição de deputado desde a redemocratização. Bolsonaro se tornou conhecido por volta de 2013-2014 por suas posições polêmicas, construindo sua imagem de um antipolítico lutando por dentro contra o sistema. Com amplo uso de estratégias nas mídias digitais, sua campanha foi bem-sucedida não apenas para elegê-lo, mas também para uma série de candidatos a deputados federais e estaduais alinhados ao “bolsonarismo” – tornando, inclusive, o PSL a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados.

Dois anos depois, a onda antipolítica, embora continue relevante, dá sinais de enfraquecimento. Macri foi derrotado por Alberto Fernández nas eleições argentinas de 2019, e o mesmo ocorreu com Donald Trump, que perdeu para o ex-vice-presidente Joe Biden. Na realidade, após a onda inicial, o que ocorreu foi uma incorporação dos movimentos antipolíticos como partidos e atores nos mecanismos institucionais.

No Brasil, o efeito se mostra nas pesquisas para as eleições municipais de 2020, em que candidatos não apenas “bolsonaristas”, mas explicitamente apoiados pelo presidente não alcançam bom desempenho. Isso ocorre ainda no momento em que Jair Bolsonaro apresenta índices recordes de aprovação. Como explicar esse fenômeno e o que as eleições municipais podem significar para a antipolítica no Brasil?

Primeiro, não se deve descartar uma possível desilusão com o fenômeno “bolsonarismo”. A campanha e o governo de Bolsonaro se apoiam não apenas no carisma pessoal do presidente, mas também em certa atitude centralizadora que por vezes exige a obediência de seus subordinados. Dos “aliados de primeira hora” que se elegeram sob a bandeira de Bolsonaro, sobraram dois principais grupos: os “traidores”, que o abandonaram, e os “bajuladores”, frequentemente integrantes dos apoiadores mais ideológicos. A população pode ter percebido que se aliar ao presidente pode ser simplesmente oportunismo eleitoral e, portanto, o fator não seria determinante para o voto.

O segundo motivo, talvez mais importante e que em parte explica o sucesso do presidente, é que Bolsonaro se afastou da antipolítica. Após um primeiro ano de difíceis relações com o Congresso, a crise causada pelo coronavírus levou Bolsonaro a se tornar aquilo que o cargo demanda: um político.

Como foi mencionado, a necessidade de obediência no governo de Bolsonaro faz com que seja difícil para o presidente se submeter a uma estrutura partidária, o que acabou levando à sua ruptura com seu partido, o PSL. O plano, então, foi criar seu próprio partido, o Aliança Pelo Brasil (APB), que supostamente conseguiria o registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em menos de um ano, a tempo de concorrer nas eleições municipais. A pandemia de COVID-19 ajudou a dar um fim aos planos, sendo que a coleta de assinaturas já andava a um ritmo mais lento que o esperado. Inclusive, é incerto se a APB se concretizará até 2022, sendo que Bolsonaro provavelmente terá que se filiar a algum partido existente para disputar as eleições.

No entanto, em abril e maio de 2020, o Palácio do Planalto passou a melhorar sua articulação com os outros poderes. O momento simbólico desse processo pode ser apontado como a troca do líder de governo, que deixou de ser Vitor Hugo (PSL/GO), também outsider da política e amigo pessoal de Bolsonaro, para Ricardo Barros (PP/PR), ex-ministro da Saúde e em seu sexto mandato como deputado. O presidente e seus filhos se aproximaram do Republicanos, partido de base evangélica que possui uma convergência de interesses com a base de apoio bolsonarista. É possível dizer que as exigências do sistema do presidencialismo de coalizão levaram o Executivo a se conciliar com os outros poderes e assumir seu papel de político, embora a base de apoio ideológico continue importante para a sustentação do governo.

Uma consequência deste processo é que, paradoxalmente, Bolsonaro aumenta sua popularidade enquanto o bolsonarismo (enquanto movimento ou ideologia) perde força. Com o aumento da governabilidade e a ampliação da base de apoio – particularmente com a concessão do Auxílio Emergencial – o presidente passa a ter que conciliar mais interesses em seu mandato, conseguindo concentrar em si a representação dos segmentos de direita e centro-direita no nível federal (ao mesmo tempo em que mantém, de forma reduzida, os acenos a sua base ideológica mais fiel). Nesse ponto, também há um distanciamento da agenda liberal e do mercado, com mais atenção a programas de gastos sociais e em infraestrutura. É nesse cenário que Bolsonaro emerge com popularidade recorde e como favorito para a reeleição em 2022.

Quais são as consequências práticas para as eleições municipais? Primeiro, Bolsonaro teve de dividir seu apoio entre candidatos de sua aliança partidária – como nas duas maiores capitais, São Paulo e Rio de Janeiro, em que apoia candidatos do Republicanos – e entre candidatos mais alinhados ao bolsonarismo ideológico, como Bruno Engler (PRTB), em Belo Horizonte. O resultado é que o voto bolsonarista se fragmentou, com diversos candidatos disputando o apoio e o favoritismo do presidente. Mesmo candidatos que se elegeram para cargos legislativos em 2018 na “onda Bolsonaro” – como Arthur do Val (Patriota/SP), por exemplo – e agora concorrem à prefeitura não conseguem mobilizar votos suficientes comparados aos candidatos tradicionais. 

Tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, os candidatos apoiados por Bolsonaro, Celso Russomanno e Marcelo Crivella, apresentam os maiores índices de rejeição. Pesquisa realizada pela XP/Ipespe mostra que 34% dos eleitores paulistanos são indiferentes ao apoio do presidente a algum candidato e aumentaria as chances de voto para apenas 20%. Algumas pesquisas sugerem que o apoio a candidatos impopulares pode estar minando a aprovação de Bolsonaro em algumas capitais. Ou seja, embora Bolsonaro venha se consolidando como representante dos interesses difusos da centro-direita, não possui uma rede de influência estabelecida capaz de mobilizar esses interesses a nível local. De certa forma, é um reflexo das relações entre o Executivo e o Legislativo: embora tenha melhorado a articulação, o Planalto atua por conta própria, sem uma estrutura partidária que consiga mobilizar.

Claro, é mais difícil avaliar qual será o efeito da antipolítica nas eleições proporcionais. É possível que candidatos ao cargo de Vereador tenham mais sucesso em se associar ao presidente para se eleger. Entretanto, com o fim das coligações para eleições proporcionais e o aumento no número de candidatos, isso pode não ser suficiente para se destacarem de outras campanhas.

Por fim, o prognóstico mais interessante – e difícil – será sobre as eleições legislativas em 2022. Assumindo que Bolsonaro mantenha sua popularidade até lá, veremos uma nova onda de candidatos novos? Os parlamentares eleitos em 2018 conseguirão se reeleger sem a plataforma bolsonarista, ou a aproximação do presidente com o Congresso pode resultar em novas alianças? Que força a antipolítica ainda terá até lá? Todos estes são bons motivos para manter os olhos abertos para os resultados de 2020.

Tópicos: Jair Bolsonaro, Eleições, TSE, Antipolítica, Crise política, Brasil

Mauro Cazzaniga

Escrito por Mauro Cazzaniga

Mauro é consultor na área de Relações Governamentais, com foco em Análise Política e Monitoramento. Foi estagiário na gerência de Relacionamento com o Poder Executivo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), onde trabalhou com projetos de automatização da leitura e análise de dados governamentais. É graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

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