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Vacinação e a impossibilidade de se criar direitos via poder regulamentar

Escrito por Vinícius Colli | 06/02/2022 11:30:00

O governo do presidente Jair Bolsonaro acumula polêmicas e derrotas junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) desde o início do seu mandato. Tais polêmicas se acentuaram durante os últimos anos em razão da atuação do Governo na condução do país durante a pandemia. Essa gestão foi contestada na Corte e resultou nas maiores derrotas do Planalto até o momento. A principal foi a decisão do STF de que Estados e Municípios possuíam competência comum à da União para tomar medidas com o fim de garantir a redução das taxas de morte e infecção oriundas da pandemia de COVID-19.

Nesse sentido, o Governo Federal adotou a narrativa de que o tribunal tirou o poder da presidência de atuar na pandemia e que, por isso, não pode colocar os planos que tinha em ação, mas que ainda assim tentou atuar para conter a pandemia. Contudo, muito dessa atuação foi baseada em adoção de práticas que não tinham comprovação científica, o que gerou uma grande disputa judicial, com o STF sendo provocado a todo momento. Não foi diferente com a portaria do Ministério do Trabalho que, entre as várias medidas, proibia empresas de demitirem seus funcionários por conta de recusa da vacinação. O argumento do governo foi de que não se pode fazer esse tipo de discriminação e que as pessoas deveriam ser vacinadas somente por opção. Contudo, há de se fazer algumas considerações sobre o assunto, principalmente no que tange à competência para legislar.

A Constituição Federal estabelece no inciso I, do art. 22, que é competência privativa da União legislar sobre o trabalho. Ainda estabelece que a União pode, mediante lei complementar, permitir que estados legislem sobre questões específicas das matérias abordadas no artigo. O objetivo do constituinte ao editar tal previsão é de garantir a uniformidade de normas trabalhistas pelo país, a fim de evitar que Estados tenham normas menos protetivas que outros, bem como garantir que só o Congresso Nacional possa debater o tema, ou seja, é competência legislativa. Logo, não pode o Governo Federal, por meio de competência regulamentar, invadir a esfera do Poder Legislativo de legislar sobre matéria de Direito do Trabalho.

Tal característica se liga diretamente ao art. 5º, II da Constituição, o princípio da legalidade, que prevê que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. A lei de que se trata o artigo diz respeito à lei em sentido estrito, ou seja, editada pelo parlamento. Portarias e decretos visam a dar fiel execução às normas existentes no país, bem como a garantir que o poder público terá os meios corretos para exercer suas funções, e o particular a ciência de seus deveres e direitos.

Assim, o Ministério do Trabalho e Previdência não poderia editar ato normativo que i) tivesse caráter normativo ordinário e; ii) que criasse ou extinguisse direitos. A mera justificativa de que se tratava de uma forma de evitar a discriminação ou de garantir a integral proteção do trabalhador não eram suficientes, de modo que, se assim quisesse, o Governo Federal poderia ter enviado projeto de lei ao Congresso Nacional para que seguisse o rito normativo ordinário.

Num outro cenário, o STF decidiu em fevereiro de 2021 que os entes públicos e privados podem adotar medidas de vacinação obrigatória. A decisão ocorreu nos autos das ADIs 6586 e 6587, e do ARE nº 1.267.879, de relatoria dos ministros Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski, respectivamente. Nesse julgamento, o Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao art. III, “d” da Lei 13.079/2020, em que havia a previsão de vacinação compulsória. No caso, a Corte entendeu que o poder público não poderia usar da força para vacinar, mas que poderia adotar medidas administrativas a fim de compelir a vacinação, ou seja, torná-la obrigatória.

Tal decisão não era inesperada, visto que a obrigação de vacinação para outras doenças já é requisito para o acesso a programas sociais e viagens internacionais. Logo, a Corte permite que os entes federativos adotem políticas para garantir a ampliação da vacinação. No caso em questão, a possibilidade de que entes públicos e privados adotem medidas que contribuem com isso se somam ao poder de subordinação do empregado ao empregador. Há, ainda, o dever de o empregador garantir a segurança e a existência de um ambiente saudável para os seus colaboradores e funcionários.

A ponderação a ser feita, em meio a um choque de princípios, qual seja a liberdade individual e a garantia coletiva de saúde, deve ser no sentido de preponderância do interesse coletivo, da saúde pública, principalmente em um cenário pandêmico grave. Assim entendeu o ministro Barroso na decisão que atendeu ao pedido de tutela de urgência que solicitava a suspensão da portaria do MPT em questão. Barroso pontuou que “em tais condições, é razoável o entendimento de que a presença de empregados não vacinados no âmbito da empresa enseja ameaça para a saúde dos demais trabalhadores, risco de danos à segurança e à saúde do meio ambiente laboral e de comprometimento da saúde do público com o qual a empresa interage.” [1]

A interpretação do ministro garante que deva haver uma justificativa plausível para a não vacinação, como a recomendação médica para tanto. A escolha individual não pode ser absoluta no sentido de colocar a vida de outras pessoas em risco e não pode o empregador ser obrigado a arcar com ônus decorrentes de escolhas particulares alheias à sua vontade, como foi o caso de obrigar que eles arcassem com o custo de realização regular de testes para notificação da doença. Nessa linha, o ministro também demonstrou que não havia norma prevendo tais disposições, qual seja a obrigação de que o empregador arcasse com os custos relativos aos testes bem como a proibição de demissão por justa causa de empregados que se recusassem a vacinar[2]. Deste modo, como aqui já fora afirmado, não poderia se usar do poder regulamentar para criar direitos, competência reservada à legislação ordinária.

Portanto, não se trata de proteção contra a discriminação do trabalhador que recusa a vacina, como disse o governo. O objetivo real é tornar efetiva a garantia do princípio da legalidade, que exige lei para criar ou extinguir direitos e deveres, bem como da proteção integral da saúde geral e do trabalhador – compreendido como um bem maior que tem preponderância ante ao direito individual de recusar a vacinação. Da mesma forma que o indivíduo pode se negar a se vacinar, o empregador pode recusar sua contratação com a justificativa de garantir a segurança sanitária do local de trabalho.

Logo, o que se verifica é que a medida adotada pelo Ministério do Trabalho na Portaria 620/2021 se tratava de retórica do governo para acenar para a sua base eleitoral. Por todos os aspectos técnicos e pela jurisprudência da Corte, é possível interpretar que o Planalto já esperava que a portaria fosse derrubada, mas tal cenário se enquadrava perfeitamente no discurso de que foi o STF que não deixou o presidente Bolsonaro governar e adotar medidas para a proteção de direitos individuais e de atos com o fim de amenizar os efeitos da pandemia, o que favorece manter mobilizada sua base para as eleições que se aproximam.

 

[1] STF. ADPF 898. Relatoria: ministro Luís Roberto Barroso, p. 7.

[2] STF. ADPF 898. Relatoria: ministro Luís Roberto Barroso, p. 13.