Por Fernanda César e Letícia Mendes
O Poder Legislativo percorre um período de ganho de proeminência diante do processo de formação de políticas públicas. Parte desse protagonismo foi construído pela visibilidade das tomadas de decisão dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ao longo dos últimos anos. Além disso, a composição de partidos políticos também catalisou o papel dos parlamentares na arena política. Com um número maior de agremiações relevantes para articular a agenda prioritária, o Poder Executivo tem deixado de conduzir as discussões que lhe são primordiais, sendo colocado em um lugar de coadjuvante na arena decisória.
Com o desenvolvimento das atividades da nossa democracia, a dinâmica de trabalho do Congresso Nacional passou a ser observada sob diversas óticas para compreender os pormenores de interação do Legislativo com o Executivo. Um dos principais aspectos trata-se das prerrogativas de cada um dos Poderes, em especial, as regras que ditam a dinâmica de trabalhos do parlamento.
Segundo Figueiredo e Limongi (2001), existe a prevalência de que as competências exclusivas do Executivo, como ser o iniciador para determinados temas, além da possibilidade de editar matérias em regime de urgência, não esquecendo das Medidas Provisórias; fazem do presidente da República um stakeholder que conduz o processo decisório de maneira proeminente. Por outro lado, o Legislativo participaria do processo de criação de leis como um ator mais reativo, sendo um cooperador diante da agenda do Executivo.
A atual Legislatura, no entanto, tem demonstrado o quanto o Congresso Nacional reverteu a correlação de forças com o Poder Executivo. O chamado presidencialismo de coalizão vivenciou momentos intempestivos durante o atual governo, em que o parlamento utilizou de suas prerrogativas para direcionar qual a agenda prioritária seria levada para a pauta.
A forma que o Poder Legislativo conduziu seus trabalhos nesses últimos quatro anos corroborou para enaltecer a centralidade do papel do parlamento para a sociedade. É salutar pontuar os diferentes momentos vividos ao longo desse período. No início da legislatura, a presença de novos parlamentares, com uma alta taxa de renovação tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal; adquiriu um ímpeto maior de aprovar proposições. Foi o que aconteceu com a Reforma da Previdência, um texto de autoria do Poder Executivo em que o Congresso Nacional levou o protagonismo na aprovação da proposta.
A pandemia da Covid-19 foi um catalisador para que o Congresso assumisse, de vez, o controle da dinâmica do processo decisório. Com um novo formato dos trabalhos, o parlamento centralizou suas atividades em torno das figuras dos líderes partidários, sendo conduzido por seus presidentes. Foram aprovadas matérias como o reconhecimento do estado de calamidade pública e o chamado “Orçamento de Guerra”, os quais possibilitaram recursos para o momento. Ainda nesta mesma seara, houve a ampliação do “Auxílio Brasil”. Por outro lado, houve avanços em marcos regulatórios como: saneamento básico, ferrovias, gás natural, geração distribuída de energia, cabotagem e barragens.
As regras regimentais ganharam um espaço substancial, em especial, após a aprovação de alterações no Regimento Interno da Câmara dos Deputados que possibilitou maior controle da pauta e das sessões para os parlamentares da situação. Essa alteração das regras do jogo mudou a forma de trabalho durante as sessões, principalmente dos partidos de oposição.
Durante os últimos quatro anos, o grande divisor de águas da relação entre Congresso e Poder Executivo foi o fortalecimento das legendas de centro. Isso só aconteceu graças às diversas movimentações das lideranças partidárias à frente do Poder Legislativo. A principal articulação que permite esse protagonismo é o conhecido “orçamento secreto”.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, aprovada como Lei nº 13.957, em 11 de novembro de 2019, foi responsável por ressuscitar a prática das “emendas de relator” (RP-9), que deixa nas mãos do relator-geral o poder de escolha sobre a destinação de recursos dentro do Orçamento. A mudança faz parte de uma série de alterações que aconteceram nos últimos anos com o intuito de assegurar que os parlamentares terão recursos destinados às suas bases eleitorais. Assim, foram criadas dotações genéricas, que não garantem a transparência da distribuição dos recursos entre os parlamentares. A imprensa passou a chamar esse processo de “orçamento secreto” ou “orçamento paralelo”.
Fortalecidos dentro do Congresso, os parlamentares passaram a utilizar esse formato para assegurar a aprovação de medidas de interesse. Para o governo eleito, isso se tornou um problema. A fim de não tornar o presidente da Câmara em um primeiro-ministro, a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu o fim da prática.
No entanto, é importante ressaltar que a polarização observada no resultado eleitoral da corrida presidencial sinaliza aos parlamentares que o novo governo eleito está longe de ser uma unanimidade entre os eleitores. Atualmente, essa situação implica em um Congresso mais independente, com maior potencial articulador e mais poder de barganha dentro das decisões da agenda governamental.
O grande resultado do fortalecimento do Congresso, através dos partidos de centro, está no posicionamento dessas legendas como guardiãs sobre a decisão de aprovar ou não a proposta de emenda à Constituição (PEC) 32/2022, conhecida como PEC da Transição. A matéria abre espaço no Orçamento de 2023 para garantir a permanência do Auxílio Brasil (Bolsa Família) e assegurar o pagamento de R$ 600,00. O texto aprovado pelo Senado Federal no dia 7 de dezembro, recebeu 64 votos favoráveis e 16 contrários em primeiro turno, e 64 votos a favor e 13 contra no segundo turno. A aprovação representa uma clara vitória do governo eleito na Casa. Porém, o número não deve ser considerado em sua integralidade para 2023, uma vez que 24 dos senadores que estiveram nessa votação, não retornarão no ano que vem. Dos 24 novatos na próxima legislatura, 15 deverão compor a oposição do governo, três possuem perfil um pouco mais independente e apenas seis deverão entrar desde o início como base do governo.
Na Câmara, a matéria também deverá ser aprovada, mas não sem antes passar por ajustes. O principal entrave, no entanto, reside fora da Casa. O Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento sobre a constitucionalidade das emendas do relator. Caso a tendência da Corte seja por uma posição mais dura, é esperado que o Congresso reaja dentro da votação da PEC. Esse é o principal definidor para entender como os partidos irão dialogar com o governo eleito a partir de 2023.
Em meio às negociações de pautas tão relevantes, o deputado Arthur Lira (PP/AL) saiu na frente para garantir os apoios necessários para a renovação de sua presidência na Câmara dos Deputados. Hoje, Lira já possui o apoio de 14 partidos, inclusive do Partido dos Trabalhadores (PT), e mantém um canal acessível com o presidente eleito Lula. No Senado Federal, a disputa ainda está em aberto, uma vez que o partido Liberal (PL) logrou grandes êxitos durante a eleição que renovou 1/3 das cadeiras. O atual presidente, senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), deverá disputar a reeleição com o senador eleito Rogério Marinho (PL/RN). Nesse cenário, sem uma grande base consolidada, Lula enfrentará dificuldades para aprovar as pautas de seu governo e, por isso, deverá negociar com partidos grandes como o União Brasil, PSD e MDB, para garantir sua governabilidade. A partir disso, o Congresso Nacional continuará mantendo seu novo papel de protagonista diante das agendas prioritárias.
Referências Bibliográficas:
FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
*Fernanda César é Líder de Inteligência da Coordenação de Legislativo da BMJ.
*Letícia Mendes é Consultora de Relações Governamentais e Engajamento da Coordenação de Legislativo da BMJ.