Por Luiz Belchior, Luiz Eduardo e Theresa Horner Hoe
A Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) voltou a ser pauta de discussões recentemente, em razão da disposição do seu artigo 7º, que prevê que o programa deverá ser revisto dez anos após a data de publicação da lei – ou seja, a revisão do programa deve ocorrer em 2022, caso não seja aprovado o projeto que amplia esse prazo.
A lei, instituída em 2012, tem como origem um projeto de lei de 1999 (PL 73/1999), de autoria da deputada Nice Lobão (PFL), mas a proposição original não previa a instituição das cotas raciais. Essa previsão foi incluída apenas em 2004, com a apensação do PL 3627/2004, de autoria do Poder Executivo. Devido a um acordo político construído também graças à pressão dos movimentos sociais, o projeto foi aprovado por unanimidade na Comissão de Educação e Cultura em 2005 e na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em 2006. Porém, o projeto sofreu obstrução e só em 2008 foi remetido ao Senado.
É importante frisar que, mesmo com a demora na aprovação da lei federal, a instituição de cotas já era implementada no âmbito estadual: o estado do Rio de Janeiro aprovou em 2000 uma lei de cotas sociais e, em 2001, a lei de cotas raciais para ingresso nas universidades do estado. A Universidade de Brasília (UnB) também adotou um sistema de cotas em 2004, sem necessidade de qualquer previsão legal, em razão da autonomia universitária.
Tanto o sistema de cotas da UnB, como o então projeto de lei que tramitava no Congresso Nacional, foram alvos de críticas por diversos setores da sociedade. O caso da UnB foi objeto de uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), ajuizada pelo partido Democratas, questionando a constitucionalidade da medida. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal julgou a ação improcedente, declarando a constitucionalidade das cotas.
As reações contrárias ao PL 73/1999 se iniciaram logo após a sua aprovação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, encabeçadas por setores da mídia e grandes veículos de comunicação. Em 2006 foi publicada uma reportagem sobre a história de dois irmãos, gêmeos univitelinos (fisicamente idênticos), e negros claros que foram classificados racialmente diferentes - a universidade reviu sua decisão posteriormente. Na ocasião, a classificação do “privilégio” da cota chegou a ser comparada ao apartheid e ao nazismo.
Os argumentos, suscitados por aqueles que se posicionavam de maneira contrária às cotas, demonstravam o receio generalizado de que as cotas eram um perigo ao mérito acadêmico. Argumentava-se que o Brasil não era um país racista e que após a abolição, em 1888, não houve barreiras institucionais à população negra. De acordo com este posicionamento, as cotas faziam sentido no contexto dos Estados Unidos porque era uma discriminação mais violenta e que o Brasil vivia uma democracia racial invejável a outros países de passados escravocratas.
Neste ponto, destaca-se trecho do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, quando julgou a ADPF que questionava a constitucionalidade das cotas raciais:
“Como é de conhecimento geral, o reduzido número de negros e pardos que exercem cargos ou funções de relevo em nossa sociedade, seja na esfera pública, seja na privada, resulta da discriminação histórica que as sucessivas gerações de pessoas pertencentes a esses grupos têm sofrido, ainda que na maior parte das vezes de forma camuflada ou implícita.
(...) a disparidade econômico-social entre brancos e negros não é produto do acaso. Não se trata, como afirmou o partido requerente da ADPF, de uma “infeliz correlação entre a cor do indivíduo, pobreza e a qualidade do estudo” (fls. 69), fazendo crer que tudo não passaria de obra inescapável do destino, uma triste coincidência. As estatísticas de hoje são produto de ações pretéritas. Revelam com objetividade as cicatrizes profundas deixadas pela opressão racial de anos de escravidão negra no Brasil. Nesse período da história nacional, a cor da pele dizia, sem qualquer pudor, o lugar do indivíduo na sociedade. A situação de desigualdade decorre de um histórico de segregação e mazelas, em que a abolição da escravatura apenas serviu para trocar o negro de senhor: passou a ser escravo de um sistema feito para que nada mude, apesar das mudanças.” [g.n.]
A aprovação da Lei de Cotas foi fundamental para viabilizar o acesso ao ensino superior de populações marginalizadas, sobretudo negros e alunos de escolas públicas, que desfrutam de estrutura e qualidade de ensino muito aquém do nível praticado pelas melhores escolas particulares do Brasil. Dessa forma, foi possível alterar o retrato do que representava o alunado das principais universidades públicas do país, composta de jovens brancos e classe média-alta.
Estima-se que em 2012, a população jovem entre 18 e 24 anos no Brasil fosse composta da seguinte forma: 32% brancos e amarelos de baixa renda, 50% de pretos, pardos ou indígenas de baixa renda, e 18% de jovens que, independentemente da cor, contava com renda familiar acima de 1,5 salário-mínimo. No entanto, os percentuais de ingressantes nas instituições federais de ensino (IFES) eram 37%, 34% e 29%, respectivamente, evidenciando a sub-representação da população negra no ensino superior público.
Entre 2012 e 2016, ano definido como prazo final para a implementação integral da política, a participação de alunos de escolas públicas cresceu 15%, chegando a 63% do total de vagas oferecidas, que é razoável quando pensamos que 86% dos alunos do ensino médio no Brasil são provenientes das redes estaduais de ensino. O ingresso de pessoas negras, independentemente de renda, também foi expressivo: o estado de Santa Catarina, por exemplo, mais do que dobrou a entrada desse grupo nas IFES.
Quanto ao rendimento acadêmico desses alunos, um estudo realizado pela Unesp reuniu dados de 2014 a 2017 que comprovam que o desempenho dos cotistas é igual ao dos demais alunos da instituição. O resultado é um argumento contra uma falácia segundo a qual os contemplados pela política não conseguiriam permanecer ou ter capacidade para concluir os cursos. O estudo também demonstrou um aumento robusto, principalmente a partir de 2015, no ingresso em cursos de maior demanda social, compreendidos pelos que possuem concorrência maior que 25 candidatos por vaga.
Por fim, vale ressaltar a importância dessa política para a vida de milhões de brasileiros, que têm a oportunidade de proporcionar uma vida melhor para a próxima geração por meio da educação superior de excelência, que no Brasil está restrita às universidades públicas e algumas privadas.
O debate sobre o tema voltou à pauta, em razão da revisão da lei federal, prevista para 2022. Já está em tramitação na Câmara dos Deputados o PL 1788/2021, que altera o prazo para revisão da lei para 2042. O projeto foi aprovado na primeira comissão, Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, na forma do substitutivo, que estabelece o prazo para revisão para 2032, e está atualmente aguardando parecer na Comissão de Direitos Humanos e Minorias – na mesma comissão foi aprovado requerimento para realização de audiência pública, ainda não agendada.
Outra proposta que trata sobre o tema é o PL 4656/2020, de autoria do senador Paulo Paim (PT), que prevê a revisão permanente da lei a cada dez anos. A lei poderia ser suspensa caso o preenchimento de vagas, em todas as universidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio, pelos grupos beneficiados alcance a mesma proporção desses grupos nos estados. Caso contrário, a lei seria automaticamente prorrogada por mais dez anos. O projeto está em tramitação no Senado Federal, mas não há andamento desde sua apresentação.
Da mesma forma que ocorreu no passado, neste momento em que a política está em vias de ser revista, há forças na sociedade que defendem que a população negra seja excluída da admissibilidade das cotas, sob o argumento de que a melhor eficiência seria adotada exclusivamente pelo critério de renda. Esse argumento ignora os mais de 300 anos de escravidão e segregação que formaram a sociedade brasileira, bem como o fato de a própria população negra ainda viver, na sua maioria, com o mínimo necessário para sobrevivência.
*Luiz Belchior é estagiário do núcleo de Estados e Municípios da BMJ Consultores Associados.
*Luiz Eduardo é estagiário do Núcleo de Inteligência e Análise Política da BMJ Consultores Associados.
*Theresa Horner Hoe é consultora do núcleo de Estados e Municípios da BMJ Consultores Associados.