Por Bernardo Nigri e Julia Coury
No segundo semestre de 2021 dois grandes eventos colocaram a Política Externa Brasileira (PEB) nos holofotes da mídia e do noticiário político: a Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro, e a 26ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP 26), em novembro. Com a promessa de que 2022 seja um ano de foco na política doméstica e eleições, uma análise mais cuidadosa sobre o funcionamento, histórico e impacto da diplomacia brasileira contemporânea torna-se essencial para entender o cenário atual das relações exteriores brasileiras e quais são os caminhos possíveis para sua atuação neste ano e a partir da próxima administração.
Nesse sentido, compreender como funciona a Organização das Nações Unidas (ONU), para além de um conjunto abstrato e nebuloso de mecanismos de cooperação, torna-se essencial. Criada após a Segunda Guerra Mundial, a partir da ratificação da Carta das Nações Unidas, no dia 24 de outubro de 1945, a ONU possui como missão principal manter a paz e a segurança mundial. Além dessas temáticas, a Organização, atualmente composta por 193 países-membros voluntários, discute e toma medidas relacionadas às mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável, direitos humanos, igualdade de gênero, emergências de saúde e econômicas, entre outros. Desde sua criação, seu escopo de atuação cresceu consideravelmente e catalisou a integração e harmonização de temas como exploração de recursos naturais no mar, solução de controvérsias de comércio e investimentos internacionais.
A efetivação dos objetivos da organização ocorre através de uma rede complexa de agências e organizações interconectadas e a assinatura de tratados e acordos que obrigam e incentivam os Estados a agirem de determinada forma. A ONU possui órgãos especializados como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), mas também organiza eventos e discussões para tratar de alguns temas. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima e a Assembleia-Geral da ONU (AGNU) são exemplos de instâncias nas quais os estados discutem problemas em comum e propõem soluções concretas a serem implementadas.
Em termos práticos, a AGNU é o principal órgão de discussão e deliberação de escopo amplo, em que são debatidos assuntos emergentes dos países-membros. As resoluções votadas e aprovadas têm caráter de recomendação e não são obrigatórias. A AGNU se reúne anualmente em Nova Iorque em sessões cujos encontros ocorrem majoritariamente entre setembro e dezembro. Além do debate geral, no qual líderes dos países discursam para o plenário da Assembleia, seis comitês temáticos dividem-se para discutir alguns dos assuntos da agenda, de Segurança à Migração. O Brasil foi o primeiro país a aderir à ONU e é um dos Estados fundadores da organização, sendo o primeiro a discursar na Assembleia desde então.
A atuação diplomática brasileira, no escopo da ONU, angariou reputação e tradição desde sua criação. A política externa institucional do Brasil na Organização quase sempre figurou como importante mecanismo para guiar a postura do país em outras esferas e em relações bilaterais. A partir do governo FHC em 1995 até o final do segundo mandato de Lula em 2010, especialmente, houve um grande enfoque para fortalecer a atuação da diplomacia multilateral do Brasil, com aumento no número de funcionários e intensificação de proposições que fomentam esse princípio. Além do foco nas relações com países vizinhos e em desenvolvimento, como por meio do MERCOSUL e dos BRICS, a atuação dentro da ONU também aumentou, como percebido principalmente nos esforços para inclusão do país no Conselho de Segurança. Nesse sentido, a despeito de diferenças ideológicas e pessoais entre Lula e FHC, a liderança do Brasil como proponente e articulador de propostas dentro da ONU manteve-se no período.
Outro fator de destaque da prática diplomática do Ministério de Relações Exteriores (MRE) é sua costumeira independência em relação ao governo do país. Os mecanismos de ingresso e formação do corpo diplomático brasileiro são historicamente rígidos e restritos levando a uma profissionalização significativa de seus funcionários, cristalizando-o como uma instituição de estado e não de governo. Nesse sentido, especialmente entre o fim da ditadura militar e o governo de Jair Bolsonaro, o Itamaraty foi marcado por uma autonomia e capacidade de iniciativa bastante elevada em comparação a outros países. Além disso, em contraste com nações com um corpo diplomático maleável e menos profissionalizado, o MRE se estabeleceu como um órgão mais moderado, que conduzia mudanças de maneira mais lenta e menos drástica durante as transições de governo.
A alçada de Jair Bolsonaro à presidência da República em 2019 marcou uma mudança significativa no Ministério. A despeito das diferenças ideológicas entre ele e seus antecessores, o corpo diplomático em si sofreu grandes mudanças internas e consequentes desgastes na ONU, especialmente em termos reputacionais. A gestão de Ernesto Araújo constituiu um novo modus operandi para a PEB, que se voltou para uma postura mais reativa, nacionalista e menos institucionalmente cristalizada. Apesar de parecer uma mudança esperada em um momento de virada ideológica do governo, ela resultou em efeitos negativos não verificados em outras gestões presidenciais. Na prática, a movimentação enfraqueceu a reputação da postura do corpo diplomático na ONU e outras organizações e o corpo diplomático tornou-se pária nessas instâncias deliberativas, uma vez que o diálogo multilateral e a busca por consenso deixaram de ser prioritárias.
A postura brasileira nos principais eventos em 2021 manteve o alinhamento com o governo, mas sinalizou um retorno tímido e parcial a algumas características tradicionais da diplomacia brasileira.
A 76ª Assembleia da ONU teve como principais temas a retomada da economia global pós-covid, os esforços para a vacinação e as discussões sobre as mudanças climáticas. Apesar da participação brasileira ter sido pouco significante, a Conferência tratou sobre projetos complexos nas áreas de paz e segurança, desarmamento, direitos humanos, igualdade de gênero e desenvolvimento sustentável, prevenção de crimes contra a humanidade e abordou sobre mudanças climáticas e fim do tráfico humano.
A Assembleia foi o primeiro evento de Carlos França à frente do Itamaraty e era esperado que Jair Bolsonaro assumisse uma postura mais moderada no discurso de abertura do Brasil, em consonância com os recuos feitos internamente após as manifestações do 7 de setembro. No entanto, o presidente criticou as medidas de restrições adotadas por governadores e prefeitos no Brasil, criticou os líderes mundiais que não optaram pelo tratamento precoce para a COVID 19 e se posicionou contra a adoção do passaporte sanitário no Brasil. Em linhas gerais, grande parte do discurso buscou manter seu eleitorado mais ideológico engajado, mesmo que em detrimento das relações diplomáticas brasileiras. A tônica da diplomacia brasileira na 76ª AGNU, portanto, manteve a tendência de radicalização da PEB que se observou durante a gestão de Jair Bolsonaro até então.
O evento consistiu na 26ª Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, em sua sigla em inglês). A conferência de 2021 foi caracterizada como uma das mais importantes negociações climáticas dos últimos anos. O evento teve dois dias direcionados à cúpula de líderes e outros oito dias que se referiam a temas específicos, como financiamento, energia, natureza, adaptação, entre outros. Jair Bolsonaro não esteve presente no evento, apesar do Brasil ter enviado uma grande delegação para Glasgow.
Na conferência, alguns acordos foram assinados. Destacam-se: a “Declaração dos líderes sobre florestas e uso da terra”, na qual o Brasil se comprometeu a deter e reverter a perda e a degradação das florestas até 2030, com a promessa de financiamento público e privado; e o “Compromisso Global sobre Metano (Global Methane Pledge)”, no qual o Brasil concordou em tomar ações voluntárias em nível nacional para reduzir as emissões globais de metano em pelo menos 30% até 2030.
A posição do Brasil nesta COP foi menos incisiva em comparação à COP25, na qual foi acusado de travar em 2019 as negociações do artigo 6º do Acordo de Paris com o posicionamento favorável à dupla contagem no mercado de carbono global. Em 2021, o país não só assinou a “Declaração dos líderes sobre florestas e uso da terra” e o “Compromisso Global sobre Metano”, como mudou seu posicionamento em relação ao mercado de carbono para a aprovação e adoção do artigo 6º. Nesse sentido, a postura do país na Conferência pareceu destoar de declarações anteriores do governo e do presidente, que sempre se mostrou crítico à pressão internacional exercida sobre o Brasil em temas de sustentabilidade e cético sobre cooperação multilateral para enfrentar a mudança climática.
A despeito dos elogios que o Brasil tenha recebido sobre os maiores compromissos assumidos neste último ano, é importante pontuar que uma imagem dúbia sobre o comprometimento ainda foi observada durante a conferência: havia uma divisão no Executivo federal entre as intenções do MRE e o Ministério do Meio Ambiente (MMA). Enquanto o embaixador Paulino Franco de Carvalho Neto reconheceu em entrevista que houve um aumento das emissões no Brasil nos últimos dois anos, devido ao aumento no desmatamento, o ministro do MMA, Joaquim Leite, não mencionou a problemática da degradação florestal em discurso na plenária da COP. Os discursos cruzados acrescentam uma nova característica à diplomacia brasileira. Apesar do governo se dispor a renunciar as posturas contrárias aos consensos ambientais da comunidade internacional, ele insiste em manter respaldo em suas pautas ideológicas (como as críticas a cooperação internacional e o combate às mudanças climáticas) nos discursos internacionais.
Em relação à Sustentabilidade, o Brasil será um dos países mais pressionados a atualizar sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). A meta anunciada na COP26 foi de redução de 50% das emissões até 2050 – em comparação à porcentagem antiga de 43%, e o país pretende apresentar uma nova Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) em 2022, tendo aberto consulta pública recentemente. Mesmo que a COP26 seja interpretada como o princípio de um retorno à liderança global na agenda climática independentemente da diplomacia brasileira, o impacto da atual administração deve persistir nos próximos anos. As consequências de longo-prazo da mudança paradigmática efetuada pelo governo de Jair Bolsonaro só poderão ser compreendidas completamente ao determinar como será a gestão do órgão pós-eleições de 2022. Não obstante, o abandono do pragmatismo da diplomacia brasileira, mesmo que temporário, diminuiu o poder de barganha dentro da ONU e enfraqueceu a capacidade nacional de influenciar processos abrangentes das Organizações Internacionais. Nesse sentido, é esperado que a comunidade internacional mantenha uma postura cautelosa sobre o Brasil em temas sensíveis em 2022, especialmente caso novos imbróglios ambientais surjam no país.
Ainda assim, é necessário pontuar, novamente, que a atuação do Itamaraty e outros atores da Esplanada pode ser (e deve), até um certo grau, distinta do modus operandi presidencial. O contraste entre a postura ideológica do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia-Geral e a postura diplomática do MRE nas tentativas de reforçar os comprometimentos do país na COP26 demonstram a habilidade do corpo diplomático e técnico do governo em realizar manobras para avançar na defesa de pautas pouco mobilizadas pelo chefe do Executivo, mas extremamente importantes no âmbito global (como políticas de combate ao desmatamento e à pandemia da COVID-19).
Nesse sentido, as eleições presidenciais de 2022 criam um cenário no qual o posicionamento internacional do Brasil deve ser utilizado como parte da campanha eleitoral tanto por Bolsonaro quanto por outros candidatos. Essa conjuntura indica que é pouco provável que o presidente diminua o uso da diplomacia como ferramenta para mobilizar os eleitores. Ainda assim, não é claro até que ponto tais discussões vão gerar frutos concretos na prática diplomática. Espera-se que os incentivos da disputa pelo Planalto sejam sentidos na tomada de decisão do Executivo cada vez mais e, nesse cenário, a compreensão e acompanhamento da atuação do Itamaraty ganham cada vez mais importância para avaliar o futuro da diplomacia brasileira
*Bernardo Nigri é consultor do Núcleo de Análise Política da BMJ.
*Julia Coury é consultora do Núcleo de Saúde & Bens de Consumo da BMJ.